Direito social, como saúde, educação e moradia, por que só o transporte público não pode ser política de governo?


Por Lenildo Ferreira (jornalista e advogado)

A incapacidade ou mesmo desnecessidade de execução direta por parte do poder público de serviços que constam no rol de direitos sociais faz com que os entes repassem periodicamente um expressivo volume de recursos para a iniciativa privada.

É assim na saúde, setor essencial em que convênios com clínicas, consultórios e hospitais da rede privada asseguram a complementação do atendimento do SUS, com a realização de exames, consultas e variados procedimentos médicos.

O mesmo ocorre na educação, por meio, por exemplo, de programas de financiamento estudantil para o ensino superior, ferramenta que permitiu uma ampla democratização do acesso às universidades no Brasil.

A moradia, também um dos direitos previstos no artigo 6º da Constituição da República, é uma ação que, evidentemente, se realiza por meio da contratação da iniciativa privada para execução das construções.

Aliás, a otimização da infraestrutura, iniciativa evidentemente primordial para o país, é um grande gerador de trânsito de recursos dos entes para as empresas: é assim que se constrói, além das casas, estradas, escolas, hospitais, açudes e equipamentos públicos em geral.

Naturalmente, todos esses investimentos são festejados e reconhecidos pela sua importância e necessidade. E não se ouve expressões descabidas como “o governo está dando dinheiro a empresários”. 

As clínicas conveniadas ao SUS buscam e precisam do lucro; o governo paga e o cidadão recebe o atendimento. As faculdades, gerando dividendos para seus proprietários, recebem os recursos do MEC e garantem vagas para alunos. As construtoras encontram nas obras públicas nicho de grande impacto financeiro.

Mas, exceto os extremistas radicais, todos entendem o trinômio óbvio: o cidadão precisa do serviço, o governo não pode (ou não deve necessariamente) oferecer diretamente, e as empresas ofertam os serviços, lucrando com isso e – inclusive – gerando emprego e renda.

No entanto, quem se der ao trabalho de visualizar o mencionado artigo 6º da Constituição haverá de perceber um serviço também essencial, presente no cotidiano da maioria dos brasileiros, por isso mesmo integrante do rol de direitos sociais, que recebe tratamento distinto de setores da opinião pública e de políticos.

É o transporte. 

Um prefeito, o mesmo que faz por exemplo repasses para clínicas médicas e para construtoras, é criticado quando implementa alguma forma de subsídio para o transporte público.

O discurso, surrado, de que se “está dando dinheiro a empresas”, associa-se a outras assertivas de cunho populista e politiqueiro, como negar a crise que afeta o transporte público, afirmar que seria praticável a redução das tarifas num cenário de carestia generalizada e de pressão permanente sobre os preços dos insumos, e, o mais costumeiro, procurar criar gratuidades sem qualquer lastro.

Outra algaravia sem qualquer base é defender que se abra novas licitações, como se houvesse uma fila de concorrentes dispostos a investir em um setor que viu despencar o fluxo de usuários, resultando em fechamento de várias empresas em todo o país.

No contexto desse gênero de politicalha, as deficiências do sistema de transporte público são indicadas como justificativas para se contrapor ao fomento do serviço. Imaginem se o mesmo fosse feito, por exemplo, em relação aos convênios do SUS para a iniciativa privada: como são muitas as falhas no atendimento, corta-se os recursos? Jamais!

O transporte público gratuito e de qualidade, tão repetido em campanhas eleitorais, é uma fábula deplorável de políticos vendilhões de grosseiras ilusões, claro. Mas, a redução do valor final da tarifa e melhoria do atendimento à população representa um desafio a ser buscado.

O que só ocorrerá, no entanto, com o reconhecimento do transporte como direito social a ser implementado por meio de políticas públicas que demandarão, em determinadas circunstâncias, desonerações e demais ações de fomento. Assim como na saúde, na educação, na moradia.

A viabilidade do sistema é direito do cidadão e, portanto, tema e - e dever - de política pública de governo. 

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