“A ordem partiu de dentro do presídio”. E daí?... - Artigo de Saulo Nunes


“As ordens partiram de dentro dos presídios”. A frase que já é rotina no noticiário policial foi turbinada nos últimos dias, com a crise instalada nas ruas do Rio Grande do Norte, estado onde o ‘poder paralelo’ do crime protagonizou mais de uma centena de ataques em vários municípios. De acordo informações divulgadas pelo governo potiguar, as ordens para tamanho terrorismo partiram de dentro das penitenciárias.

Sem uma análise prévia, há quem se surpreenda com o fato de que detentos possam transmitir informações – neste caso, “ordens” – das celas para o mundo extramuros. A princípio, parece um absurdo a possibilidade da comunicação de homens presos para homens livres. E quando isso acontece, recai sobre o Estado a ‘culpa’ pelo diálogo que, para muita gente, deveria ser evitado.

Com meus inesquecíveis seis anos de vivência no sistema prisional, lamento dizer o óbvio: é simplesmente i-m-p-o-s-s-í-v-e-l evitar que apenados se comuniquem com o mundo exterior. Isso mesmo que você leu: impossível. 

A não ser que dois direitos fundamentais para a dignidade humana da pessoa presa sejam revistos: 1) o direito à visita de familiares; 2) o direito de receber advogados. Enquanto presidiários fizerem gozo desses dois direitos, a comunicação cadeia-rua estará em plena sintonia. 

Investigações revelam que, mesmo nos presídios federais, onde determinados chefes de facções são ‘monitorados’ em seus momentos de visita familiar ou nas conversas com advogados, os diálogos entre visitantes e visitados costumam ser ‘por códigos’. Ou seja, uma ordem dada de dentro da prisão para tocar o terror aqui nas ruas pode ser repassada com um simples “Diga a mamãe que eu estou com saudades dela”. 

É claro que a existência de aparelhos celulares nas prisões – isso, sim, deve ser evitado pelos governos – potencializa os comandos para a deflagração de ataques nas ruas. Óbvio. Mas a ausência dos telefones nas cadeias não garante o fim comunicação presídio-cidade. 

A onda de ataques ainda vigente no estado vizinho pode/deve ser explicada com base em diversas outras causas. A “ordem de dentro do presídio” é apenas uma gota nesse oceano.

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Saulo Nunes é formado em Comunicação Social pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Ingressou via concurso público no sistema penitenciário do estado em 2009, onde permaneceu como policial penal até o ano de 2015. A partir daí, também após aprovação em concurso, passou a trabalhar como Investigador da Polícia Civil. É autor de Monte Santo: A casa de detenção de Campina Grande 

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