*Por Saulo Nunes
A equipe médica já estava pronta para iniciar a operação. O corpo do agente de saúde, estendido e anestesiado na maca, receberia os primeiros cortes do bisturi onde a inflamação exigia tal procedimento. Mas antes do primeiro risco cortante, eis que surge o ‘impensável’: mais de uma dezena de agentes de saúde entraram na sala de cirurgia dizendo que vieram “para ajudar na operação”. Você se espantou com isso? Pois é. Não faz sentido mesmo.
Foi exatamente isso – mudando apenas os personagens e o cenário – o que aconteceu na manhã desta quarta-feira, 29/janeiro, em Campina Grande, quando equipes da Polícia Civil tentavam investigar o paradeiro do homem que matou o agente prisional Márcio Wender Barreto dos Reis, de 43 anos.
Márcio foi assassinado a facadas na noite da terça-feira, 28/jan, e as investigações são compartilhadas entre a Delegacia de Homicídios e a Delegacia de Roubos e Furtos. A depender da motivação do crime, uma dessas unidades é que assina o Inquérito Policial e o remete à justiça.
O fato é que, “de repente”, um comboio de viaturas da Polícia Penal (sistema penitenciário) – caracterizadas – apareceu no local onde investigadores da Polícia Civil (descaracterizados) tentavam iniciar o trabalho investigativo. Aí, por óbvio, os investigadores da PCPB entreolharam-se como médicos que veem agentes de saúde entrarem numa sala de cirurgia para “ajudar a cortar o abdômen de um amigo-paciente”.
O currículo
Um órgão chamado Instituto Sou da Paz (ISP), com sede em São Paulo, sai lá do Sudeste do país para estudar/pesquisar a Delegacia de Homicídios de Campina Grande, devido ao excelente índice de elucidação de assassinatos que essa unidade policial vem apresentando há anos. Qualquer pesquisador “mea-bamba” vai constatar que Campina tem, hoje, “Classificação 1º Mundo” quando o assunto é investigar, identificar e prender autores de homicídios na cidade.
Não bastasse, o ISP publicou em outubro de 2024 uma revista com foco voltado exclusivamente à Polícia Civil paraibana, pela forma como a PCPB investiga esses casos. É só dizer ao Google “Boas Práticas na Melhoria da Investigação de Homicídios”, que vai surgir, na tela do seu celular, o que eu estou dizendo.
Ou seja, não é novidade para ninguém que a Delegacia de Homicídios dá conta do recado.
O impensável
Dois fatores são suficientes para lembrar que agentes prisionais NÃO deveriam estar ali, hoje, à procura de quem matou Márcio Wender. O primeiro deles é a ATRIBUIÇÃO. O nome ‘polícia penal’ estampado nas costas dos agentes penais não concede a eles a atribuição de investigar homicídios, seja quem for a vítima, seja onde for cometido o delito.
O segundo – e de importância simétrica – é o know-how (habilidade; conhecimento; expertise; o “saber fazer”). Agente prisional não é treinado – justamente por não ser sua função – a investigar crimes, tampouco homicídios. Suas atribuições são outras, absurdamente diferentes.
Não é porque existe um antenome ‘polícia’ nas costas de um agente penal que ele vai sair dos presídios para investigar crime na rua. Senão um agente comunitário – só por ter o sobrenome ‘Saúde’ em sua jaqueta – poderia pegar um bisturi de um médico e começar expor as vísceras de um paciente adormecido.
É natural que os agentes penais estejam ansiosos pela prisão do assassino de Márcio Wender. Ponto. Mas se um dia, algum amigo meu sentar no banco dos réus por algum crime a ele atribuído, eu não posso julgar o caso. Quem faz isso é a justiça. “Amigos, amigos; atribuições à parte”.
“Polícia é polícia” (mas não em todo canto)
Para quem eventualmente não saiba, eu fui agente penitenciário de 2009 a 2015, quando o setor ainda não era a hoje denominada Polícia Penal. Mesmo já estando em outra profissão desde 2015, eu sempre defendi a mudança de nomenclatura no sistema prisional, pois seus agentes fazem, de fato, trabalho de polícia INTERNA; INTRAMUROS. No máximo, escoltas externas de presos para fóruns, hospitais, delegacias, etc. Investigar homicídios é outra história.
O que se viu hoje, em um ambiente que deveria ser de investigação velada, foi um desfile de viaturas caracterizadas, protagonizado por uma polícia que não deveria estar ali, desmontando os semblantes de quem – por sua expertise já comprovada – é estudado/analisado por institutos de pesquisa com sede no estado mais rico do país. Um belo estudo de caso para cursos de formação [nas duas polícias].
Polícia é polícia, mas cada uma tem seus limites e devem ser respeitados. Caso contrário, corre-se o risco de uma operação policial ser confundida com operação de apendicite.
Tenhamos dó do paciente.
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*Saulo Nunes é policial civil, jornalista e escritor