Uma pergunta de resposta fácil: alguém já viu a mídia – e até mesmo as polícias – estimularem a população a denunciar, abertamente (de “cara limpa”), traficantes, matadores do tráfico ou chefes de facções criminosas? Não, né? E por quê? A resposta também é óbvia: a tal “lei do silêncio” imposta pelo crime organizado é impiedosa e não raro resulta em pena de morte para quem afronta esses criminosos.
Quem eventualmente pretenda apontar o paradeiro de um traficante, por exemplo, é aconselhado a fazê-lo por meio do Disque-Denúncia, que na Polícia Civil da Paraíba é acionado pelo número 197. A ferramenta é absolutamente segura, evitando qualquer tipo de risco a faz uso dela.
Embarquei nesse tema hoje porque, esses dias, ao rolar a tela do meu celular na internet, deparei-me com um homem de seus 45 ou 50 anos de idade, concedendo entrevista à TV Record (não sei em qual estado; apenas reconheci a empresa por causa da espuma do microfone). O assunto era sobre o feminicídio cometido pelo seu filho contra a companheira do rapaz.
Ao discorrer sobre o fato, o entrevistado deu uma declaração desconcertante:
“Meninas e mulheres, por favor, parem com essa coisa de achar que a Lei Maria da Penha vai evitar o assassinato de vocês; não encarem o homem”.
O conselho bate de frente – e pesado – com a campanha quase que mundial sobre o assassinato de mulheres em contexto doméstico-familiar. Os meios de comunicação, dos mais variados níveis de alcance, ecoam o grito uníssono de que “mulheres vítimas de agressão devem romper o silêncio e denunciar seus maridos/companheiros agressores”.
E parece um movimento sensato. Afinal, o Brasil (a Europa também!) amarga casos lamentáveis de homens que não aceitam passivamente o fim de relacionamentos e partem para a violência. Assim, ao menos pela ‘lógica’, qualquer medida que vise melhorar esse cenário parece ser bem-vinda.
Mas analisando friamente a mensagem que aquele homem entrevistado quis passar, nela também reside ‘lógica’. O que ele defende não é a inexistência da denúncia; nada disso. Mas a forma como o homem agressor deve ser repelido.
“Existem homens equilibrados, mas existem homens desequilibrados. Não é todo homem que vai aceitar você falar diversas verdades na cara dele”, declarou. O entrevistado ainda pediu perdão à mãe da vítima por não ter conseguido evitar a tragédia. “Eu tentei separar ele dela; tentei separar ela dele; mas não consegui”, afirmou o pai do assassino, sob lágrimas.
A campanha
Todos os dias, vemos publicações jornalísticas injetarem doses cavalares de estímulos nas pessoas – sejam elas vítimas, familiares das vítimas, vizinhos das vítimas ou testemunhas dos casos –, no sentido de “romper o silêncio” e apontar o dedo em direção ao homem agressor de mulheres. Até mesmo o velho jargão que dizia “Em briga de marido e mulher não se mete a colher” já foi completamente descartado.
A “falha”
Porém, como bem frisou o pai entrevistado, existem “níveis de agressores”. A depender do grau de agressividade do homem inconformado – ou até mesmo de doença psíquica que o acomete em alguns casos –, esse estímulo exacerbado da campanha, por melhor que seja sua intenção, pode ser um ‘convite à morte’ da parte mais frágil, ou seja, da mulher. E em se confirmando essa teoria, a forma como o problema é abordado pela mídia pode, em alguns casos, resultar no oposto do que se pretende.
A pergunta
Agora, uma pergunta de resposta não tão fácil: se uma mulher vítima de agressão no contexto da Lei Maria da Penha é companheira do chefe de uma facção criminosa, e a mídia/polícia têm conhecimento desse detalhe, essa mulher e seus derredores (familiares, vizinhos, testemunhas, etc.) serão estimulados a “meter a colher”, “romper o silêncio” e apontar o dedo para esse agressor?
Saulo Nunes é jornalista, escritor e policial civil