Naquele tempo, os tempos eram outros. São João não era apenas uma festa. Era congraçamento, encontro das famílias, reunião de amigos, um acontecimento esperado o ano todo. Uma legítima e marcante expressão das nossas raízes culturais.
A rodoviária ficava fruviando. Os ônibus da Itapemirim chegavam lotados. Vinham os filhos visitar os pais, chiando o sotaque de São Paulo ou do Rio, às vezes cheios das modernidades. A vizinhada louvava como estavam mudados, mais gordos e rosados!
As casas se enchiam de gente, com fartura de comida, de zuada e de alegria.
Os homens despalhavam o milho verde, ralavam a espiga – e o ralador, comprado na feira, amolado que só língua de fofoqueira, aqui e ali, levava um samboque de dedo.
As mulheres terminavam o preparo, embalavam as pamonhas na palha bem amarrada, colocavam o panelão enorme de canjica no fogo. No zunzunzum das conversas, todo mundo falava, ninguém ouvia e todos entendiam.
A noite chegava com a casa, a rua e o mundo todo envolvidos em aromas doces que se misturavam a um fumaceiro ardido das fogueiras incontáveis, uma em cada porta. Quem era mais abastado fazia a maior.
Ah! Quem dera um drone para ter batido retratos lá do alto em uma noite daquelas. Ia ser bonito de se ver!
Mãos se cruzavam sobre a lenha queimando, para firmar o pacto dos compadres de fogueira, levado a sério como compromisso para a vida toda.
O milho ia para a brasa. Os meninos pequenos soltavam ratinhos e giravam o chuveirinho. A rapazola detonava bomba canoa, bomba bujão, peido de velha. Buraco no muro virava esconderijo para detonação. Tudo tremia. As moças faziam simpatia para saber o nome do futuro namorado...
E lá vinha um balão! Pega o espelho! Mira nele! Canta: “Cai, cai, balão! Cai, cai, balão”. Foi-se embora. Mas, lá vinha outro... e outro, e outro...
Tome fumaça! Os olhos choravam sem querer. O milho bem assadinho era envolto na palha. Daqui a pouco, as travessas enchiam as mesas: pamonha, canjica, milho cozido, queijo de coalho. O ágape nordestino, a confraternização de um povo amoldado em sua cultura.
A radiola tocava Assisão e Luiz Gonzaga. Tinha quadrilha junina em cada bairro, sem dançarinos profissionais, gente lorde, figurino caro. Eram crianças com bigodes pintados a lápis, calças com falsos remendos, chapéus de palha, vestidos simples de chita, tranças arrumadas pelas mães.
O marcador gritava pelo padre, anunciava os noivos, bradava o alavantu. As famílias da molecada eram o público, ali do lado, de pé, entre admirando e rindo.
E a fogueira queimava até se reduzir em brasas que viravam cinzas. E Assisão cantava até o giro do LP chegar pela enésima vez à última faixa. E os balões desapareciam no céu salpicado de pontinhos vermelhos encantadores.
Até a fumava evanescia, restando somente sua catinga marcante que, quando também sumia, era como se anunciasse o fim do São João. E a espera do ano seguinte.
Mas, isso foi naquele tempo, quando o tempo era outro. E o tempo passou. Em algum momento, a gente não percebeu, veio o último São João daqueles.
As fogueiras foram apagadas antes de serem acesas. O balão não caiu porque não subiu. A música mudou para uma zuada muito diferente daquelas letras e melodias que falavam das nossas raízes.
Parece que não foi de um dia para o outro. Mas, seja como for, a gente não viu passar e nem sabia que estava acabando. E acabou mesmo.
São João hoje é apresentação musical no Parque do Povo e casas de shows. Umas bandeirolas banguelas nos bairros. Quadrilhas juninas profissionais e caríssimas se apresentando em grandes estruturas. E só.
Válido e bom para a economia da cidade. Mas, afora saudades e saudosismos, não é mais São João.
E nem é culpa de ninguém. É o ciclo da vida. Tudo se acaba, até as coisas, as festas, as tradições.
É que os tempos são outros. E daquele tempo só restam as lembranças.
Mas, até as lembranças vão se acabar também.... Junto com a gente - afinal, elas vivem em nós.
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Lenildo Ferreira - Hora Agora (Reprodução proibida)