BORA RIR? | Brasileiros ‘parabenizam’ assassinos de mulheres por suposta pisa em fortão dos 60 socos

Por Saulo Nunes

Sabe aqueles dias que você acorda e, antes mesmo de levantar da cama, depara-se com a pergunta “por onde eu começo hoje?”, diante do volume de tarefas que tem a executar no decorrer do dia? Pois é. É exatamente isso que vai alfinetar sua cabeça, caso você se aventure a ‘estudar’ segurança pública. A cada tentativa de entender o problema, você vai perguntar a si mesmo “Por onde eu começo isso?”

Como exemplo, debrucemo-nos sobre o caso do covarde flagrado por circuito de câmeras de um elevador, em Natal/RN, aplicando em sua ex-companheira uma sequência de agressões que rendeu ao criminoso o apelido de ‘fortão dos 60 socos’. As imagens correm o mundo – inclusive o mundo carcerário –, detalhe crucial para a reflexão do dia.

A revolta popular é compreensível. A atitude do agressor foi absurda; os ferimentos causados são muito graves; o crime não pode nem deve ficar impune. Tudo isso é compreensível. Mas sem querer dar uma de ‘direitos humanos’, algumas (muitas!) reações vistas na internet têm se mostrado injustificáveis. Aliás, risíveis, pelo grau de inocência. 

Cronologicamente explicando: as imagens das agressões caíram nas redes sociais; o povão expressou as indignações esperadas; depois torceu para que o agressor fosse preso; e quando preso, que ele fosse espancado da mesma forma (ou pior) pelos detentos. 

Aí, o fortão foi capturado e, segundo publicações de portais de notícias, agredido por presidiários na cadeia – para o bem geral da Nação.

O povo foi à loucura. Muitas postagens vibrantes, como que um primeiro gol da seleção numa final de Copa do Mundo. “Bem-feito!”; “Foi pouco!”; “Era pra ter matado!” “Ainda tá vivo?!” Frases acaloradas de puro agradecimento àqueles que “fizeram o que eu queria ter feito”. Em outras palavras, “palmas para os nossos heróis”.

E quem são esses heróis?

Outros tantos vídeos correm a internet para uma multidão de pouca memória. São mulheres com cabeças raspadas, chorando, sangrando e prometendo nunca mais “errar de novo”. Esse ‘erro’ pode ser muita coisa: roubar nas áreas onde mora; mudar de facção; tentar sair da vida do crime; ou simplesmente querer encerrar um relacionamento com alguém.

Esse ‘alguém’, quando está em liberdade, desfere muito mais do que 60 socos na companheira pela ousadia dela em pensar na separação. E caso ela siga adiante com a ideia, engrossa a estatística do que no Brasil se chama de feminicídio.

Mas se o ‘alguém’ está preso, também não tem problema. Com razoável poder de influência na rua, ele manda seus comparsas de parcos neurônios sequestrar, espancar, sangrar, raspar a cabeça e registrar, em vídeo, o que acontece com uma mulher que ousa pôr fim a um relacionamento conjugal com quem está atrás das grades.

É exatamente esse ‘alguém’ – em número bem elevado – que vai espancar o fortão dos 60 socos, quando este chegar ao presídio, após milhões de apelos feitos pelo povo brasileiro ávido por justiça. Esse é o herói da Nação.

Vá dormir, que é melhor.

Cômica e tragicamente, nós, brasileiros, parabenizamos assassinos de mulheres que, quando estão presos, fazem justiça com suas próprias mãos [sujas de sangue feminino] contra quem foi flagrado batendo em mulher em um elevador.

Cômica e tragicamente, nós, brasileiros, estimulamos o empoderamento de criminosos VIOLENTOS justamente no momento em que eles deveriam estar mais fracos, que é na prisão, cumprindo pena.

Queremos pena de morte para agressores de mulheres? Então levemos a discussão para o Congresso Nacional. Obrigação de PRESO é botar as mãos pra trás, dizer “sim, senhor e não, senhor” aos servidores do sistema penitenciário, e não aplicar sentenças do período medieval, a pedidos de uma torcida que se diz vítima da violência. 

Os muros dos presídios não seguram a força do ‘poder paralelo’. Quando ele cresce – para a frustração da nossa vã filosofia –, não se limita ao que a gente, inocentemente, acredita ser piedade de uma mulher indefesa em um elevador.

Ou a gente entende a segurança pública em sua real dimensão, ou é melhor voltar pra cama e dormir. 

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Saulo Nunes é jornalista, escritor e policial civil

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