O caso "Vaqueirinho", a luta antimanicomial e a Agenda Nacional pelo Desencarceramento - Saulo Nunes


É muito provável que você já tenha conhecimento do final trágico de Gerson de Melo Machado (conhecido como ‘Vaqueirinho’), 19 anos, que morreu nesse domingo, 30/novembro, após invadir o recinto de uma leoa em um zoológico de João Pessoa. O caso já é repercussão nacional, pela forma como tudo aconteceu.

Até então, Vaqueirinho era um mero ‘conhecido da polícia’. Desde muito cedo, começou a cometer os chamados pequenos delitos e a perambular pelos cárceres destinados a menores infratores. Com a tragédia no zoológico – e somente pela forma como aconteceu – é que detalhes da vida de Gerson vieram à tona. Se ele tivesse sido executado por traficantes, por exemplo, seria apenas “+ 1” na selva da violência urbana, e os debates efervescentes sobre a luta antimanicomial, nas últimas horas, simplesmente estariam adormecidos. 

A esquizofrenia 

Devido ao enredo da morte trágica, milhões de pessoas pelo Brasil agora sabem que Gerson sofria de problemas mentais graves. Era filho de mãe esquizofrênica; seus quatro irmãos foram adotados por outras famílias (por causa da doença da mãe); viveu sob a guarda da avó em situações muito precárias, a ponto, inclusive, de policiais penais darem uma ajuda financeira à idosa, em determinada ocasião. Enfim, um criminoso de baixo potencial lesivo (pelo menos até então) cujas condutas, muito provavelmente, foram motivadas por sua doença mental.

O episódio gerou discussões em muitos terrenos. A história do movimento antimanicomial, por exemplo, tem sido bastante mencionada, já que a mobilização resultou na desativação de vários manicômios em todo o país. Sem tratamento adequado para uma parcela dos pacientes, esses doentes – cujo percentual desconheço – são vítimas e vilões nas ruas (e nos cárceres). 

As escritas

No livro que eu lancei em 2019 – Monte Santo: A Casa de Detenção de Campina Grande – eu menciono casos de presos bem parecidos com Vaqueirinho. Pessoas acometidas por doenças mentais e que JAMAIS deveriam estar em uma unidade prisional convencional. Um deles, certo dia, tentou tomar a arma de um policial penal dentro do presídio Serrotão. Em 2012, ‘Pantaleão’ – o preso a que me refiro –, já em liberdade, tentou tomar a arma de um policial militar no Centro de Campina Grande. Acabou baleado (e morto, se não me falha a memória).

Vez por outra, tenho publicado artigos aqui no Hora Agora sobre a mania [jurídico-parlamentar] brasileira de adotar políticas à base do ‘modismo’ ou da pressão popular, com pouco ou nenhum embasamento científico. Isso na segurança pública é uma tragédia anunciada. O fim dos manicômios, portanto – pelo menos da forma como tem sido feita –, costuma vomitar episódios de desfechos trágicos.

A outra ‘luta’

Sim, eu sei. A ‘vida’ nos manicômios brasileiros não era vida. Já visitei amigos e até um parente que precisaram passar alguns dias naquele lugar. E sobre o tema, o documentário Holocausto Brasileiro sintetiza com maestria o drama vivido por pacientes e profissionais nesses ambientes. Mas ainda assim, “acabar com o lugar sem alternativas que o substituam” parece não ser a decisão mais inteligente. 

É mais ou menos a teoria de outro movimento – este sob o nome de Agenda Nacional pelo Desencarceramento – que se mexe pelo Brasil há anos e, de alguma forma, pode (PODE = “possibilidade”) estar relacionado a decisões políticas de pouca/nenhuma valia para a segurança pública.

Só para começo de história, o primeiro (de uma lista de 10) pontos defendidos por esse movimento é a “Suspensão de qualquer verba voltada para a construção de novas unidades prisionais ou de internação”. Eu até gostaria (MUITO!) de viver em um país em que presídios não fossem uma necessidade. Mas... O meu querer não pode ser maior do que a vida real.

Aqui, cabe uma pergunta: você já consegue citar exemplos que PODEM estar relacionados a essa luta pelo desencarceramento no Brasil? 

O grito da polícia

A história de Vaqueirinho, que tanto deu trabalho às polícias em seus 16 registros de ocorrências e perturbações, agora serve de ‘grito’ por parte de quem é acionado para ‘tratar’ – e às vezes MATAR, a depender das circunstâncias – pessoas acometidas por transtornos mentais.  “Na falta de um médico, chame homens armados”. 

E se der problema, é só culpar a polícia. 

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Saulo Nunes é jornalista, escritor e policial civil

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