Por Saulo Nunes
O ano era 2014. Eu estava em pleno curso de formação na Academia de Ensino da Polícia Civil (Acadepol), em João Pessoa, e um dos instrutores soltou em sala de aula um conselho/orientação que nunca mais saiu da minha memória: “Cuidado com o canto da sereia”. Em seguida, ele explicou que, quando a gente tivesse atuando nas ruas, grande parcela da sociedade iria pedir que nós, policiais, matássemos bandidos a toque de caixa. Afinal, “bandido bom é bandido morto!”
Para quem eventualmente não saiba, “canto da sereia” é uma expressão que significa uma fala ou discurso atraente, sedutor, mas que na verdade esconde perigo, engano ou armadilha. Num linguajar mais raso, é uma espécie de “cheiro do queijo”. E aí, o policial precisa ter muita cautela, porque quando a ratoeira dispara, salva-se quem consegue tirar o pescoço (quando consegue...).
Com o episódio da prisão de cinco policiais militares em João Pessoa, nessa segunda-feira, 17/agosto, o canto da sereia ecoou com força nas redes sociais. O ‘coral’ é composto por políticos, policiais (do mais alto ao mais baixo escalão) e o chamado ‘povão’. A alegação para a cantilena é de que os cinco PMs presos teriam reagido a um confronto com bandidos e, por isso mesmo, os criminosos mereceram morrer.
É claro que eu não vou fazer juízo de valor sobre o fato concreto. Já fiz isso em outros carnavais, e o futuro acabou mostrando meu erro. Os policiais do caso em tela foram presos esta semana devido a uma ocorrência em fevereiro deste ano, no Conde, litoral sul da Paraíba. De acordo com a versão da PM, os cinco ‘oponentes’ estavam armados em um carro, reagiram a uma abordagem policial e, no revide, morreram.
Eu já disse em outros artigos que tenho vivência suficiente para saber que cada caso é um caso. Já estive em algumas ocorrências com tiros e já quase matei inocentes. Controlar o dedo em momentos de alto estresse – que exigem respostas em questão de segundos – não é como abotoar sandálias numa Alpargatas da vida. É preciso uma combinação de fatores (internos e externos) para que tudo saia bem.
Nessas horas, controlar o dedo requer, inclusive, CORAGEM. Porque até mesmo nas polícias sempre vai ter alguém dizendo que “se fosse eu, faria isso ou aquilo”, pra posar de capitão Nascimento herói da nação. Ahh, se tem...
Então, se eu não estava nessa ocorrência e não faço parte da equipe que investiga o caso, não posso nem sonhar em emitir opiniões sobre o episódio concreto. Não sei absolutamente nada do que aconteceu ali – somente o que é veiculado pelas mídias – e, por prudência, não se opina sobre o que não se sabe.
Pra cima de mim, é?
O foco do texto hoje é “o canto da sereia”; “o cheiro do queijo”; “a armadilha maliciosa”. É óbvio que os policiais presos merecem e devem ter sua ampla defesa respeitada, como qualquer outro cidadão. Óbvio! Mas direito de defesa para uns não pode se confundir com estímulo à ‘beira do abismo’ para outros.
As causas desse confronto que resultou em cinco mortos e cinco presos têm múltiplas origens. Quase nenhuma delas é mencionada pelos que se dizem ‘revoltados’ na internet com a prisão dos policiais. É mais simples – e certamente mais conveniente – bradar que “bandido bom é bandido morto”, sem a mínima preocupação se amanhã ou daqui a um mês outros policiais venham a ser presos também, embebecidos pelo vibrante canto da sereia.
Se “bandido bom é bandido morto”, então nós, sociedade, mobilizemo-nos para aprovar via Congresso Nacional leis que permitam a pena de morte após sentença judicial condenatória. Aí sim, seria o próprio Estado, de verdade, assumindo todos os riscos possíveis. Eu até balanço favorável para algumas situações.
Mas jogar nas costas dos policiais essa poesia de que “missão dada é missão cumprida”; “vá e vença”; “#facanacaveria!”
Ahhh... Essa corda não dá mais para engolir. Porque quando ela rompe, a gente sabe de qual lado é.
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Saulo Nunes é jornalista, escritor e policial civil