“Já liguei pra polícia três vezes. Se o senhor não resolver, vou ter que pedir ajuda aos ‘meninos’ mesmo”. Numa cidade muito longe daqui – mas com problemas que parecem com os problemas daqui – dona Maria queria, desesperadamente, denunciar um vizinho devido a um atrito qualquer. Mesmo sabendo que no bairro/favela onde morava a ordem era “não envolver a polícia nas querelas locais”, ela ainda se arriscou em busca da justiça da forma como deve ser feita. O resultado disso?
Os ‘meninos’ mencionados por essa mulher são os traficantes. Para evitar a presença da polícia no bairro/favela, eles mesmos ditam as regras [duras!] de convivência local. Tudo se resolve ali, rapidinho, sem burocracia. A depender da infração, a sentença varia de tortura a pena de morte. O povo local em sua maioria é gente de bem, mas acaba ‘apoiando’ o tribunal do crime. O serviço é fácil, rápido, acessível e “eficiente”. Só que custa caro, e essa conta costuma vir depois.
Num bairro/favela com cinco mil habitantes, ouso apostar que 95% dos moradores costumam respeitar as leis básicas de convivência. Mas os 5% restantes – minoria numericamente insignificante – é quem dita as regras e vai mandando até onde podem. Parece um absurdo, mas é a cristalina realidade numa cidade muito longe daqui, com problemas bem parecidos com os problemas daqui.
Não, não me vem com esse papo de “o bem vence o mal”. Essa expressãozinha de efeito só serve para inspirar sessões musicais em escolas da primeira infância. É simplesmente inadmissível que 95 seres humanos – e com a lei ao seu lado – se curvem diante de 5 semelhantes. Numa democracia, isso não pode ser normal.
Mas... É o que temos. E não apenas no bairro/favela. O poder das minorias está em todo lugar, causando um efeito cascata que – acredite, moço(a) – vai chegar à sua rua. Duvida? Então peguemos a história de dona Maria como exemplo.
Na Polícia
Dizem que a maioria dos policiais NÃO É corrupta. E eu acredito. Nesses 16 anos de vivência no meio, posso garantir que poucos policiais se envolvem, efetivamente, com os criminosos. O problema é que, dependendo do grau de envolvimento, esse pouco efetivo desviado causa um estrago gigante.
Quer uma conta de bodega? Num estado que tenha 15 mil agentes de segurança, se apenas 5% deles desviarem armas para o crime organizado todo mês, estamos falando de 750 armas em mãos erradas. Em um ano, são exatas 9 mil armas de bandeja para os bandidos. Imagine esse arsenal sendo usado em roubos, homicídios, latrocínios...
Na justiça
Eu também acredito piamente que a maioria esmagadora dos servidores do Poder Judiciário é composta de pessoas honestas. Não tenho dúvidas quanto a isso. Mas a minoria que vende sentenças negocia com criminosos financeiramente empoderados, não raro responsáveis por muitos crimes graves.
Na imprensa
Aqui, o cálculo é meio confuso porque as relações de causa e efeito são diferentes também. Acho muito pouco provável que empresas de comunicação recebem dinheiro para ‘defender o crime’ propriamente dito. Porém, por uma série de razões que patinam de ideologia política a crença religiosa, [DE]formadores de opinião elegem pautas da modinha, que chamam a atenção dos legisladores, que criam e aprovam projetos de lei inadequados à realidade, que, como é de se esperar, não irão funcionar, na prática, para frear a violência. Você já captou algum exemplo ou eu preciso listar???
Na política
Eles, os ‘políticos’, são diariamente apontados como os maiores causadores de todos os males que se possa imaginar. A violência, então, não ficaria de fora. E perdoe-me se eu desapontei (de um lado ou de outro), mas eu não sei ‘chutar’ qual percentual de corrupção abarca os nossos representantes eleitos.
O que eu posso afirmar com segurança é que eles são minoria numericamente insignificante diante do povo que os elegem. Ora... se nós somos maioria e temos a lei ao nosso lado, o que nos impede de mudar tudo isso?
Dona Maria
A resposta para a pergunta acima cabe até para o caso de dona Maria. A maioria dos policiais pode até não ser corrupta, mas boa parcela ou está cansada/desmotivada, ou tem preguiça de atender uma cidadã, ou até medo mesmo de enfrentar os criminosos. Se dona Maria não tiver a sorte de ser atendida pela minoria dos servidores públicos que se mantém firme na missão, ela vai acabar indo pedir ajuda aos ‘meninos’ da favela. O mesmo se aplica ao Judiciário e a todo e qualquer segmento do serviço público: nego cansado/desmotivado, omisso ou inapto à função.
Na imprensa, creio de verdade que a maioria dos seus profissionais deseja justiça e paz social. Mas por motivos diversos (Medo? Ignorância? Omissão?) chegam a levantar bandeiras até sobre ideias com as quais não concordam, para não confrontar o poder de uma minoria.
E na política, ao que parece, uma minoria defendendo interesses do crime organizado continua sambando em cima de uma maioria que demonstra medo e/ou indiferença sobre o problema. O resultado de tudo isso não nasce da noite para o dia. Mas já nasceu. E berra forte em várias regiões do país.
Dona Maria, que eu saiba, não morreu. Mas nunca mais apareceu na delegacia de uma cidade muito longe daqui, com problemas que parecem com os problemas daqui.
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Saulo Nunes é jornalista, escritor e policial civil
